Em Nome do Pai

Aproximava-se o fim da década de 60. Pai tinha se ido. Uma diáspora anunciava-se. Dos quatorze filhos, apenas quatro trabalhavam. Um, em São Paulo. Outro, em Belo Horizonte. Meus planos eram sair de Montes Claros, ir para Belo Horizonte, com possibilidade de seguir para Brasília, DF, se não conseguisse me firmar na Capital mineira. Pretendia cursar faculdade. Talvez, uma dos ramos da engenharia. Não era ousadia: era a única saída. Ânsia de sobrevivência digna. Isto equivaleria à quebra de paradigmas. Mas, paradigmas ainda não eram coqueluche de empresários e consultores de empresas.

Não tinha por que assumir esse rompante: o de cursar faculdade e, via de conseqüência, colar grau de doutor. Exemplos diretos a família não oferecia. Pai e mãe, sem as forças da leitura. Alguns tios e tias, inclusos na mesma noite. Nenhuma prima professora. Nada que me alicerçasse, em termos de cultura formal. Apenas a faina bruta de futuro deserdado parecia restar aos meus parentes, lançando enorme ponto de interrogação sobre o nosso futuro.  Uma voz dissonante, a dos meus pais, tangia um universo que lhes fora negado. Parecia insustentável aquela situação que nos obrigava por algo do qual eles não se valiam, e se resolviam na vida sem ele.

De tudo faziam para que alcançássemos o lume do conhecimento.  Em meu pai era tanta a sofreguidão que queria dar conta de tudo sozinho: manter alimentados, estudando e sem trabalho seus quatorze filhos. E houve quem, bondosamente, lhe indicasse o caminho de sua roça, para dar ocupação aos seus negros. Morreu trabalhando, fulminado por um derrame cerebral que o matou para o nosso convívio, depois o levou de vez. Nunca teve tempo, nem hábito de cuidar da saúde. Era a prescrição da época, de Previdência Social incipiente e prevenção da saúde nula.

Algumas faculdades começavam a se instalar em Montes Claros (letras, matemática, pedagogia, medicina, dentre outras). Em dezembro, fechando a década, eu teria às mãos meus dois diplomas: do Curso Científico, na Escola Estadual Prof. Plínio Ribeiro; do Básico de Violino, no Conservatório Estadual Lorenzo Fernandez, e um acerto trabalhista que me renderia o mês trabalhado, décimo terceiro e liberação do FGTS. Minha provisão de sobrevivência na Capital, com independência… Por alguns dias.

A sorte nos ofícios não me vinha de fada madrinha: cozinheiro de bofe com fubá para alimentação dos cães que guardavam o negócio de compra e venda de cabelo humano de um tal senhor Ludendorff; entregador e apanhador de roupas da lavanderia do seu Cizino (pai do Negão Torresmo); torneiro mecânico, por alguns dias, na oficina de Antônio Pernambucano; bombeiro (hoje, frentista), no posto do seu Quinzinho, esquina de Rua Carlos Gomes, com a Praça de Esportes… E, naquele ano, Operador de Máquinas, na Lavanderia Azteca, do Zé Venâncio.  Afora outras ocupações de safra miúda e devassada glória.

Negócio era acreditar. Buscar novos horizontes, embalado pela fantasia tão cara ao meu pai.  Com o diploma do Científico e a aura de ter vencido os dois primeiros festivais de música da cidade, com composições autorais, surpreso comigo mesmo, ganhei rumo, sozinho. De última hora, um parente que iria comigo, desandou. Em 06 de janeiro de 1971, manhã de sol, portando uma mala rústica de madeira pintada, descia na Estação da Sapucaí, sem grandes encantamentos. Apenas a certeza angustiante de que aquele primeiro passo, do trem para a plataforma da estação, não retrocederia, latejava. Fui para o Bairro Santa Tereza e desci para uma favela à beira da linha do trem (Favela do Cardoso). Ali morava a família da Tia Mana. Barraco com sala/cozinha e quarto. O casal e quatro filhos. Era meu cartão de visita breve. Independente do comovente acolhimento da Tia.  Lugar com natureza de camaleão: de dia família, de noite, bebedeira, prostituição, boemia, muita briga e disparos de armas de fogo. Como não fizera tenção de morar com ela, nem com qualquer parente, logo  me transferi para uma república no Bairro Lagoinha. O nome da proprietária: Dona Glória. Não atinei nesse umbral. Não buscava o efêmero. Dividia o quarto com um empregado da Mannesmann. Ele trabalhava de noite e eu ficava fora de dia. Meu primeiro almoço num restaurante do mercado do bairro foi um equívoco. Achei que seria uma bela pedida aquele cartaz anunciando o cardápio em letras maiúsculas: comi bucho de boi por dobradinha com feijão branco. A cultura do lugar você não se aprende soletrando as palavras, nem as comendo.

Não era a primeira vez que pisava o solo da Capital. Duas por conta do Exército (alistamento e dispensa); outra com o Grupo Banzé (para apresentação na TV Belo Horizonte, mais tarde TV Globo). Vantagem que me resguardaria do espanto das primeiras horas, mas não me blindaria da vivência. Daqui voltara esbaforido o meu irmão mais velho, quando da primeira vez, com notícias as mais velozes e alvissareiras: o povo se comprimia, puxava o fôlego e sapecava na carreira para respirar do outro lado da Afonso Pena, salvando-se de finar sob as rodas de uma quantidade infinita de veículos. Os sinais de trânsito eram um piscar d’olhos. Não era permitido dar trela a estranhos: podia ser um ladrão ou estelionatário com uma história comovente e truques arrebatadores…

Dois primeiros anos: dificuldades. Não de adaptação à cidade nova, mas de aceitação que a nova cidade me expulsasse da minha cidade. À noite, frequentemente, ia à Rodoviária acompanhar a saída do ônibus para Montes Claros. Ali, encontrava algum conhecido ou pessoa amiga. Deles obtinha notícias e, por eles, enviava algo para casa. Com o passar do tempo foram rareando os encontros. Até que, num determinado momento, passei a não identificar as pessoas. A sensação primeira era de que minha cidade havia sido tomada por forasteiros. Culpa da industrialização. Noutro plano, a compreensão de que cidades são organismos vivos. E estão em constante renovação. Não mais voltei à Rodoviária, senão para me embarcar em meio a ilustres desconhecidos conterrâneos que participavam do crescimento de uma das cidades mais progressistas do Polígono das Secas.

Houve algo martirizante de presença obstinada. Toda vez que me punha diante de uma alimentação nutritiva e variada, tinha que descer, primeiro, o nó da certeza de que os meus não estavam tendo o mesmo acesso que eu. Muitas vezes, solitariamente, sem confissão, desviava-me: era uma mistura de sentimentos desencontrados; uma quase-culpa. Futuramente eu iria dizer em Do Cinza ao Negro:  só mais tarde compreendemos/a sabedoria que se tira da fome. Fome, ali, pode ser entendida metaforicamente.

Já estabelecido de aluguel, na Rua Itapema, quase-esquina de Rua Montes Claros, Bairro Anchieta, convidei algumas irmãs para virem. Ao todo, vieram seis: quatro irmãs e dois irmãos. Aqui moram e têm propriedades, fizeram cursos superiores de administração de empresas, serviço social/enfermagem, pedagogia, magistério, engenharia mecânica. Todos com pós ou especializações. Com isso a família ficou dividida em dois núcleos. Nossas férias eram dedicadas à parte da família distante. Um dos irmãos, devido à coincidência de datas, preferia ir passar seu aniversário junto com o da sua cidade.

Trabalhava, escrevia e compunha. A passagem pela noite, como cantor-fundo musical de bebedores de cerveja, durou pouco. A fumaça dos cigarros abriu a passarela para o abandono. A falta de noção dos proprietários dos estabelecimentos completou a medida. Fazia amizades afins, de círculo restrito. Frequentava o Lucas, no Ed. Maletta, onde cerca de quinze anos depois, tive escritório de advocacia. Na Cantina do Lucas, concentravam-se os escritores da época. Todos os meus amigos tinham bons empregos e eram universitários. Exceto o bancário Macário.

Percebi por que sobremesa vem depois da refeição. A pouca tolerância ao cigarro, à bebida e aos efeitos dela nas pessoas, indicavam-me outras paisagens. Já havia deposto o sonho dos festivais de música. Amealhei dois segundos lugares; no SESC e na cidade de Sabará. A competição perdia sua marca maior: a graça da espontaneidade e da criatividade desapegada, com o aparecimento da música feita para festival. Rarefazia-se o resto de brisa de Woodstock. Algumas injustiças entre os participantes pareciam indicar preferências de jurados. A desconfiança não é território de boa vizinhança. Fui!

Em 1976, lancei meu primeiro livro de poesia e textos: Prosoema. Edição própria, duzentos exemplares. Graças ao amigo jornalista Arthur Luiz Ferreira. Lançamento na Casa do Jornalista. Notícia no Estado de Minas. Vendi pouco mais de dez por cento de exemplares. Por lá apareceram alguns escritores, prestigiando o evento, como Wander Pirolli, Antônio Barreto, Paschoal Motta, Micítaus do Issás… De Prosoema, um texto foi para a peça teatral Histórias da Gente, de Mercedes Pilati. Já havia escrito um livro…

Meu desidério estava por se cumprir: o difícil desafio da faculdade pública. Foi para isso que eu vim. Cobrava-me. O trabalho absorvia-me. Não me dedicava a afetos.

Em 1977 deixei o convívio dos meus para me casar com uma linda e cativante paranaense. Trazia no sangue cruzamentos interessantes: alemão, russo e italiano. Ofereci-lhe o sangue do negro escravo e do índio tapuia (um dos autóctones brasileiros). Conhecemo-nos em nossa primeira aparição pública, na Capital, em janeiro de 1971. Ironicamente, ano seguinte ao casamento, minha terceira tentativa obtinha êxito no vestibular da UFMG. As opções engenharia química e química ficaram para trás: não eram oferecidas para o noturno. Um estranho privilégio com indicativo certo: só para quem pudesse se sustentar, sem trabalhar. Não me fora difícil entender esse e outros recados. Na minha cidade, a Praça de Esportes (que era municipal), quando eu criança, funcionava sob a mesma orientação, em todos os seus turnos. Se lográssemos passar pela cerca-viva com arame farpado, éramos colocados para fora. Contentávamo-nos com as benditas falhas na folhagem: a vista da piscina, uma loucura!

Nascia meu primeiro filho, em 1978. A segunda, veio no ano seguinte. Assustados com tamanha fertilidade, demos um tempo… E não o retomamos. Talvez por ter cabido a mim cuidar das crianças no turno complementar à faculdade. O que fiz e voltaria a fazê-lo com o mesmo prazer e empenho. Certamente, menos embriagado de sono: privilégio da idade.

Em 1993, editei pela Mazza Edições Ltda. Do Cinza ao Negro (poesia), meu segundo livro. Lançado em Montes Claros pelo Psiu Poético de 2002. Indicado, em 2009, no Projeto de Pesquisa da Professora Zilá Bernd para figurar na Antologia de Poesia Afro-Brasileira – 150 Anos de Consciência Negra no Brasil, da Unilasalle, RS.

Em 2005, também pela Mazza Edições, veio Achados (contos).  Lançado pelo Psiu Poético e adotado pelo PAES da Unimontes, no mesmo ano. Adaptado para o teatro pela atriz paranaense Mercedes Pilati, com músicas de minha autoria e de Francisco Mazza, direção de Enio Carvalho. Participou das edições de 2007 e 2008 do Festival de Teatro de Curitiba e temporadas respectivas no teatro da FALEC. Resenhas publicadas na Revista Scripta 19, da PUC/MG, e Revista da Academia Mineira de Letras. Duas vezes objeto de tese de graduandos da Unimontes.

Quando do centenário da cidade, com onze anos de idade, assisti maravilhado às cavalhadas no Campo do Ateneu, com as arquibancadas ainda rasgadas na terra. Da marcante data, restaram para a memória do montesclarense algumas fotos e uma música composta pelo Dr. Luiz de Paula, a pedido do prefeito da época. Montes Claros Vovó Centenária não é tão executada hoje como no tempo das serenatas, mas é uma referência.

Em setembro de 2006, o 2º Fórum Sócio-Cultural de Montes Claros começava as discussões de como seriam comemorados em 2007 os 150 anos de emancipação política do Município. Como parte de minha modesta e possível contribuição, propus a elaboração e execução de uma música. Apresentei fragmentos dela. Pretendia descrever, em linguagem musical, o meu olhar sobre a cidade. Demandaria orquestra e coro. As condições da época não o permitiram. No início deste 2010, quando condições objetivas dão sinais positivos, recaem sobre mim condições adversas.

Montes Claros longe está de ser uma lembrança dependurada na parede da memória, em paráfrase ao itabirano gauche. Ou uma mágoa, uma alegria, uma impossibilidade de realização. Quando fisicamente de lá saí, já havia vivido infância e adolescência em condições de produzir amadurecimento extemporâneo, dada a cartilha da época. Não saí para conquistar o mundo, nem para afrontar a vida. Buscava apenas o direito básico que deveria assistir a todo ser humano: ter condições dignas para realizar o seu sonho. O sonho que já vem sonhado, abismado de urgências, e que desconhece limites para sua realização. Ao contrário dos versos de Fernando Pessoa, Deixem-me crer/O que nunca poderei ser, Em mim repercutiam ausências de impossibilidades: ir além de si. Por ter portado minha criança e meu adolescente avassalador, vieram-me intactas também, no DNA, todas as impressões irrepetíveis desses primeiros anos. E, à medida que o meu corpo vai se expressando na profissão, nas artes, na convivência, vai deixando impressas pistas que facilmente levam à sua origem. Não entendo ser humano fora da universalidade. Mas a existência quis pintar em minha tela de fundo uns Montes Claros, como uma imensa saudade, revisitada, renovada e multiplicada. Onde meus filhos e minha mulher se encantam e nutrem profundo sentimento de pertença.

Waldemar Euzébio Pereira